<Contactos com as populções na zona operacional do Batalhão de Caçadores 4511 - Angola 1972/74>

 

Contacto com as populações

 

Só quando cheguei a Sanza Pombo, passados alguns dias, é que me apercebi a realidade da situação da população.

Á minha volta só via miséria, aldeias sujas, população com vestuário roto, e os mais pequenos nus, quase pedintes. Chegavam-se a nós para satisfazer algumas das suas necessidades.

Tinha alguma formação moral e politica, pois estudei numa escola de freiras, em que falávamos dos missionários e a sua acção e tive contacto com a repressão do governo, pois era vizinho da eng. Virgínia Moura, do PCP, e sabia das suas sucessivas prisões e do marido e tive algumas vezes de fugir à policia que carregava na rua, sobre as pessoas, com cassetetes e jactos de água, para nos dispersar, em datas comemorativas, proibidas.

Perante a situação encontrada, criou-se em mim uma revolta interior e passei a ser muito sensível aos problemas dos indígenas, por onde passei. Sempre que possível ajudava-os. Os meus pensamentos deixaram de se concentrar na guerra, não estava lá para isso.

 

Nascimento de uma criança
Morte do meu alfaiate
Mercado do café na nossa zona Operacional
Expulsão da aldeia de um rapaz considerado feiticeiro
Roubo de cabritos pela tropa
Circuncisão dos rapazes
“ As Filhas e os dotes”

 

 

Principal

 

 

 

 

 

 

 

Nascimento de uma criança (Foto na zona da Cabaca)

Acontece que estava junto ao muro do refeitório de sargentos, que ficava numa zona de passagem da população, bebendo pela garrafa, uma cerveja, quando avistei uma mulher ofegante, a suar muito e a gemer.

Olhando para ela logo me apercebi que possivelmente estaria preste a ter um filho. Dirigi-me para ela perguntando-lhe se necessitava de alguma coisa, ela não respondeu mas olhou para a minha mão, o que eu entendi como estivesse com sede. Passei-lhe para a mão a bebida e fui buscar um refrigerante por entender ser melhor para ela.

Quando regressei encontrei a garrafa vazia e deixei de a ver.

Fiquei ali olhando para todos os lados, passado algum tempo, ouvi choro de uma criança que vinha da traseira do edifício. Dirigi-me para aí e já a encontrei a caminhar com o filho nos braços e sozinha.

Dei-lhe a o refrigerante uma “Fanta de laranja” , não mais me esqueci, e levei o menino ao quarto de banho onde o lavei. Para mim foi grande a admiração o facto de o bebé ser de cor branca. Já tinha ouvido falar que nasciam brancos e só algum tempo depois tomarem a cor negra, mas nunca tinha visto.

Entreguei-o à mãe ela sorriu para mim e foi-se. Ainda tentei encontrá-la mais tarde para a ajudar, pois fiquei marcado para sempre com aquela situação, mas não mais a vi.

 

 

 

 

 

Morte do meu alfaiate

Tradicionalmente todos os militares tinham, uma lavadeira/o e um costureiro. O facto de todo o nosso trabalho ser desenvolvido em zonas de mata e em zonas envolvente do quartel e mesmo nele, em terrenos arenosos e muito poeirentos, era necessário lavar e arranjar constantemente as fardas e camuflados.

Como a lavagem era feita por meios muito rudimentar, esfregada em superfícies rígidas, acabava por se romper.

Aparecia então o alfaiate. Ainda está na minha retina, o Mário, assim se chamava, à entrada da sua cubata, sentado na frente da sua máquina de costura, a fazer os remendos à nossa roupa.

Deste homem simpático e falador, tenho alguns episódios para contar que demonstram a formação cultural destes povos, muito diferente da nossa e que me deixaram boquiaberto.

Antes de mais quero dizer que faleceu ainda durante a minha estadia em Sanza Pombo, depois de ter caído, numas escadas que davam para a entrada da sua aldeia (sanzala). Bateu com a cabeça na esquina de uma delas e teve morte instantânea.

Mas passo a narrar alguns dos factos que eu presenciei:

- Certo dia passei pela sanzala à procura do Mário, para lhe deixar um camuflado para um remendo. Quando cheguei à sua casa, chamei-o, como não me respondeu, espreitei para dentro, quando para minha surpresa vi a sua esposa a ter relações sexuais com outro indivíduo que não ele.

Certo dia ganhei coragem e perguntei-lhe, “então o que se passa já vim mais que uma vez à tua procura e encontro outro no teu lugar, com a tua mulher.

- Resposta pronta: “Não há problema os filhos são sempre meus”

É de referir a importância das filhas, ao contrário dos filhos. Estes eram quase abandonados

Acontece que a riqueza destas famílias estava no número de “filhas” que tinham (e talvez o outro homem, fosse mais produtivo), isto é, a mulher é dele, logo os seus filhos, são oficialmente dele.

Como tinha bastante simpatia pelo Mário, foi às cerimonias fúnebres, colaborando nelas.

Acontece que estes povos tinham uma forma muita peculiar para celebrar este acto, juntavam-se e festejavam com danças e consumo de álcool.

Por outro lado, e contrariamente à morte, por vezes ouviam-se na sanzala junto ao quartel grandes gritarias. Com esse choro assinalavam o nascimento de mais uma criança.

 Pois á civil e na companhia de um elemento da população que me ajudou a transportar uma grade de cerveja, como oferta para as cerimonias, fui dar os meus sentimentos à família.

Assisti então a um espectáculo formidável de simbolismo que eu nunca mais pude esquecer.

Com o corpo no hall da sua cubata, um grupo de mulheres mais idosas, dançava à sua volta, ao mesmo tempo entoavam frases, e vibravam abanadores.

No resto da sanzala comia-se e principalmente bebia-se, em franco convívio.

Mas o que mais me impressionou foi a forma como a esposa se expressou durante esse tempo. Com o corpo despido para cima, dançava à volta da sanzala, pronunciando algumas frases e quando chegava perto do corpo, batia-lhe com um mama e continua.

 

 

 

 

 

Mercado do café na nossa zona Operacional

Na zona operacional de Sanza era cultivado o café, explorado em algumas fazendas por brancos e também pela população, em pequena escala.

Comecei a tomar contacto com esta realidade quando em dada altura fui mandado intervir numa fazenda, onde se tinha instalado uma desordem.

Fui lá com a minha secção de sapadores mas já não foi necessária a nossa ajuda. Acontece que os trabalhadores do café que viviam dentro das instalações foram impedidos de sair pela população, o que originou um desacato com alguns feridos, por cortes de catana.

Soube então em conversa com os responsáveis da fazenda, que a maioria das fazendas da região, eram normalmente dirigido por capatazes brancos, e os trabalhadores eram provenientes do planalto central, conhecidos por bailundos, qualquer que fosse a sua origem do centro e sul de Angola. Eles constituíam a totalidade da mão de obra não especializada das roças de café, e obrigada a permanecer, dentro das instalações, quase uma prisão, impedidos de sair, pela grande rivalidade, entre tribos. Cheguei a ver a chegada desses trabalhadores em camiões, com grandes taipais.

Os donos das propriedades só iam á região na altura das colheitas para a comercialização do produto.

 

Noutra altura fui também com o meu pessoal, fazer a segurança a um mercado popular de venda de café. Cheguei, instalamo-nos numa zona alta com boa visibilidade, onde se dominavam as entradas e tudo o que se passava no mercado.

Viam-se vários camiões e carrinhas, de brancos, estacionados ao redor do recinto e no centro do terreno a população com os seus sacos de café. Eram sacos grandes, maiores dos que eu estava habituado a ver em Portugal.

A uma dada altura um lavrador veio ter comigo e fez-me queixa que o estavam a enganar, pois o saco dele era muito mais pesado do que lhe estavam a fazer quer.

Hesitei pois estavam presentes autoridades civis, mas tive pena do homem e acompanhei-o. Mostrou-me o saco e disse-me que só lhe davam um dado peso que já não me lembro, mas pelo seu volume pareceu-me pouco.

Fiz esse reparo ao comprador, branco, que sem voltar a pesar o saco, deu novo peso bem mais alto que o anterior, dizendo que se tinha enganado.

Aproveitei e dei um passeio para ver como funcionava aquele aparente aglomerado indisciplinado de pessoas. Achei muito interessante a forma como faziam as contas das suas vendas, escrevendo no chão com um pau, alguns traços que só eles entendiam.

 

Para além da sensação que fiquei que os lavradores eram roubados no peso, a forma como era feito o pagamento, em senhas que eram trocados por géneros nas lojas dos comerciantes, não permitia que fizessem as suas legitimas opções de compra, caso recebessem em dinheiro.

 

Terminado o trabalho regressamos ao quartel, ao recolhermos as viaturas, a sentinela transmitiu-me um pedido do comandante, para que fosse falar com ele ao comando.

Apresentei-me e logo ali me repreendeu, por eu intervir a favor do lavrador, que se achava prejudicado no peso, pois tinha chegado uma mensagem rádio do chefe de posto, da zona, a fazer queixa do sucedido.

Ora se tinha dúvidas quanto à atitude dos comerciantes brancos quanto à lisura dos seus actos, fiquei após esta atitude, com a certeza que estavam lá para explorar o pobre do lavrador.

 

 

 

 

 

 - Expulsão da aldeia de um rapaz considerado feiticeiro

Quando do arranjo da picada de Quimbele para o Cuango, o nosso avanço era lento pois éramos acompanhados de máquinas de engenharia. Aproveitei para visitar as sanzalas por onde passávamos.

Como tínhamos um enfermeiro militar connosco, sempre que era necessário actuávamos para minorar o sofrimento da população.

Fizemos tratamento a cortes, com objectos cortantes, paludismo, feridas na pele e até um ataque de epilepsia.

Mas o que mais me marcou não foram as feridas do corpo, mas sim as do espírito. Acontece que ao passar junto a uma aldeia, ouvimos muitos gritos. Dirigimo-nos por isso para lá. Ao entrar encontramos um rapaz já crescido, encostado atrás de uma árvore a ser apedrejado.

Atravessamos uma viatura Unimog, no meio, para evitar ser atingido e procurei o sova para saber o que se passava. Juntou-se um aglomerado de pessoas, que não nos entendiam, no entanto apercebi-me que um rapaz acompanhava a conversa com gesto de cabeça. Perguntei-lhe então se sabia o que eu estava a dizer o que ele respondeu que sim. Serviu assim de intérprete.

Vim então a saber que o rapaz tinha dado a comer umas ervas aos pais que morreram. Pelo facto, foi considerado possuído por poderes de feitiçaria, espírito mau, que podiam vir a virar-se contra outras pessoas da aldeia, pelo que foi expulso.

Ainda os tentei demover argumentando com palavras que contrariavam essa visão das coisas, mas depressa percebi que eram despropositadas, pois estava a impor a minha cultura, que eles não entendiam.

Tradicionalmente, a crença na feitiçaria faz parte da cultural dos povos do norte de Angola.

Resolvi então recolher o rapaz e levei-o para uma sanzala distante dessa, entregando-o ao sova.

 

 

 

 

  

Roubo de cabritos

A alimentação das nossas tropas na região, nos quartéis e aquartelamentos, era razoável, embora muito repetida, à base de feijão, massas, e conservas.

Certa vez estive num aquartelamento, a comer durante um mês, massas e salsichas. Por isso sempre que era possível, tentávamos arranjar uma peça de caça ou mais facilmente um cabrito.

Junto ás sanzalas, e á solta, normalmente encontrávamos, cães, galinhas, e cabritos. Era aqui que nos dirigíamos para comprar este último animal, muito apreciado entre nós, assado ou de caldeirada.

Feita a escolha, começava a confusão, para saber a quem devia ser entregue o dinheiro. Eram dezenas as mãos a querer receber, como seu proprietário. Muitas das vezes para conseguir sair dali com a compra, entregávamos a quantia pedida ao sova e ele ficava a descobrir o dono.

Se por um lado para nós era fácil pagá-lo, pois tínhamos poder de compra, por outra era quase impossível encontra a quem pagar.

Para evitar estes problemas e cientes que não havia um grande prejuízo para as populações, a maioria das vezes, os animais eram roubados. Haviam várias técnicas de recolha a melhor e que não dava nas vistas era a seguinte:

- A viatura seguia devagar junto aos animais, um dos militares que seguiam na traseira, deitava-se na traseira, nas mãos levava um laço de corda grossa.

Quando passava perto do animal, prendia-o pelo pescoço puxando-o para cima da viatura com ajuda dos restantes camaradas e logo camuflado debaixo de uma manta. Era importante que o animal não fizesse barulho, Algumas das vezes em que ele berrou e foi ouvido, logo apareceram no aquartelamento, a reclamar a sua posse vários elementos da população. Pagava-se sem hesitar mas só recorrendo ao sova, como foi dito acima.

 

 

 

 

 

Circuncisão dos rapazes (Ver fotos)

A circuncisão (foto na zona da Cabaca) era um costume praticado pelas tribos desta região do Norte de Angola.

Tomei contacto com esta prática, em Sanza quando em certo dia, ouvi gritos que vinham do cimo da sanzala que ficava junto ao quartel.

Tentei então saber o que se passava e fui informado pelos contratados que trabalhavam na machamba militar de que eu era responsável, que era a circuncisão dos rapazes da aldeia.

Explicaram-me então que os rapazes de uma dada idade eram juntos, e deslocados para uma zona isolada perto da sanzala e recolhidos numa cubata grande, por alguns dos curas tradicionais.

Era então feita a operação a sangue frio, para que não reagissem, podendo aleijar-se, eram presas as mãos. Ficando então todos junto, alimentando-se e fazendo os curativos, até cicatrizar, o corte feito. Diariamente dirigiam-se pela manha ao rio para lavar as ferdas na água fria.

Ocupavam o dia a ouvir historias com valores morais, bons conselhos, provérbios, adivinhas, caça e pesca

O remédio utilizado era feito de ervas e raízes, que era colocado sobre as feridas. 

 

 

 

 

 

“ As Filhas e os dotes”

            Como já referi no relato sobre o meu costureiro, o que poderia dar alguns bens (riqueza) aos pais, era o dote que receberiam, caso casassem as filhas.

Assim, as raparigas eram muito protegidas, para que não fossem molestadas sexualmente, antes de terem marido.

Para isso dormiam na esteira dos pais, aprendiam as suas praticas sexuais, e eram mantidas virgens até ao casamento.

Quando os pais resolviam casar os filhos, tinham que dar um dote aos pais da noiva, pago em géneros e amimais domésticos.

Por outro lado, ao homem, era testada a sua masculinidade. Um grupo de mulheres da família, exigia a masturbação do noivo, e a sua esperma era levantada com um pequeno pau para ver da sua consistência, tirando daí a conclusão, da sua fertilidade.

Depois de casadas, era seu dever, ir buscar água, procurar comida e lenha para o lume. Era frequente, vermos grupos de mulheres, com vasilhas cheias de água, e ramos secos de árvores, á cabeça, a caminho da aldeia.

Também cultivavam e colhiam, a mandioca, e recolhiam frutas e raízes, para a sua alimentação.

Na preparação do “funge”, base da alimentação das populações, era necessário triturar a mandioca, até esta ficar farinha. Junto às cubatas, a azafama era grande diariamente, com as mulheres, muitas delas com os filhos presos às suas costas, nessa tarefa, no pilão. Enquanto subiam e desciam o pau, de triturar, enxames de abelhas que aproveitavam para apanhar parte da farinha que estava a ser aí produzida, voava e pousava. Para que se pudesse trabalhar a mandioca, ela tinha que ser seca. Em estrados voltados ao sol ela era aí estendida, libertando um cheiro intenso, que se sentia à distancia. Finalmente esta farinha era cozida, ficava tipo puré, e comida á mão em pequenas bolas, retiradas directamente da panela negra.

Aos rapazes não eram pedidas nenhumas responsabilidades, acompanhavam os pais, na caça, ou fazendo armadilhas.

 

 

 

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